Um caso emblemático julgado pelo Tribunal do Júri em Manaus neste ano marcou uma nova perspectiva para os debates sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero. Em sintonia com o instrumento criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Defensoria do Estado do Amazonas (DPE-AM) atuou para que todas as juradas do conselho de sentença fossem mulheres e, assim, houvesse maior empatia com a ré, acusada de matar o próprio filho recém-nascido.
Foram 12 horas de um árduo julgamento no último dia 31 de julho, quando, após às 21h, a mulher foi absolvida da acusação por maioria de votos.
A defesa feita pelo defensor público Carlos Almeida Filho apontou falhas na instrução processual e que a investigação foi negligente. Ele defendeu que a ré, uma mulher jovem e pobre da periferia da capital, que chegou a ficar presa durante um ano, também foi vítima. A tese defendida foi de negativa de autoria.
“Aconteceu uma morte que não deveria ter acontecido e se buscou a solução mais fácil de criminalizar a mulher”, disse ele, durante o julgamento. O defensor alertou que, caso a assistida fosse condenada, um outro filho dela, de quatro meses de idade, viraria um “órfão de mãe viva”.
Carlos Almeida Filho acredita que o fato de todas juradas serem mulheres contribuiu significativamente para uma decisão mais justa, que levou em consideração as peculiaridades femininas, sobretudo as que envolvem a gestação, o parto e o pós-parto. Ele mesmo destacou que, como homem, não teria como avaliar adequadamente estas particularidades, assim como possíveis jurados do sexo masculino.
Com experiência em atuação nas varas criminais do Amazonas, a defensora pública Juliana Inoue Marino analisa que a estratégia da Defensoria evidenciou a condição da ré de mãe em pós-parto. Juliana Mariano diz que foi bem explorado pelo defensor público o estado puerperal dá ré e o período de readaptação do corpo dela após o parto, “que traz alteração física e psicológica, com variação hormonal, muitas vezes uma depressão”, conduzindo as juradas ao um olhar crítico para o ocorrido.
Juliana Mariano explica que o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero “pretende que as decisões judiciais se concretizem com um papel não de mera repetição de sentenças e sim numa forma de rompimento com a cultura de discriminação e preconceitos”.
O caso julgado em Manaus demonstra que há possibilidades abertas à perspectiva de gênero, que, mesmo não estando previstas no protocolo, assumem o espírito da normativa.
A estratégia da Defensoria Pública de obter um júri formado somente por mulheres se mostrou eficaz para a utilização de argumentos de sororidade nesse caso específico, em sintonia com o que pretende o protocolo.
Sobre o protocolo
Editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2021, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero passou a ser obrigatório em todo Poder Judiciário nacional a partir de 2023, por força da Resolução CNJ n. 492/2023.
O objetivo do documento é orientar a Justiça, levando-a a considerar o papel das desigualdades estruturais nos julgamentos de conflitos que envolvam mulheres.
A defensora pública Juliana Mariano observa que o instrumento surgiu como “um anseio social mesmo de construção de uma sociedade justa, com ênfase nos direitos humanos, e considerando o papel que a desigualdade tem nos conflitos que envolvem as mulheres”.
O defensor público do Amazonas Maurilio Casas Maia, professor de Direito da Proteção dos Vulneráveis e Sistema de Justiça na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), afirma que “casos como este mostram que os debates sobre acesso à justiça sob a perspectiva de gênero têm se intensificado na Defensoria Pública e demonstram que cada situação pode demandar uma abordagem única, mais técnica e sensível, e, sobretudo, mais adequada para garantir o direito pleno das mulheres”.
“Profissionais como advogados, defensores públicos, membros do Ministério Público e juízes precisam estar abertos a uma realidade de múltiplas vulnerabilidades e desenvolver uma sensibilidade para lidar com essa complexidade. No fim, serão as especificidades de cada caso e as necessidades concretas das mulheres que guiarão as estratégias jurídicas a serem adotadas. Por isso, é fundamental que o debate sobre justiça com perspectiva de gênero se mantenha vivo e atento às realidades do cotidiano”, enfatiza.
Orientações específicas
O protocolo traz orientações específicas nos casos que incluam mulheres com deficiência, gestantes, lactantes, mães, trabalhadoras, negras, quilombolas, indígenas, ciganas, migrantes, lésbicas, bissexuais, trans, mulheres em situação de violência doméstica e/ou sexual, em cumprimento de medida de privação de liberdade, em situação de rua, vítimas de tráfico de pessoas ou de trabalho escravo, em situação de assédio ou discriminação no trabalho.
Além das orientações relativas aos julgamentos, o protocolo determina que os tribunais promovam cursos que incluam, obrigatoriamente, conteúdos sobre direitos humanos, gênero, raça e etnia.
O protocolo é fruto dos estudos desenvolvidos por um grupo de trabalho instituído pela Portaria CNJ 27/2021, com a participação de todos os segmentos da Justiça – estadual, federal, trabalhista, militar e eleitoral. O documento foi dividido em três partes. Na primeira delas, são apresentados conceitos relevantes para julgar com perspectiva de gênero.
Na segunda, há sugestão de etapas a serem seguidas por magistradas e magistrados no contexto decisório, como ferramentas para auxiliá-los no exercício de uma jurisdição com perspectiva de gênero. Já na terceira parte, são apresentadas particularidades dos ramos das Justiças Federal, Estadual, do Trabalho, Eleitoral e Militar que envolvem, em geral, a temática de gênero, abordando exemplos de questões e problemáticas recorrentes de cada ramo.
Entrevista com Anne Teive Auras
Coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (DPE-SC), a defensora pública Anne Teive Auras observa que o protocolo constitui um dos esforços adotados pelo Brasil para incorporar as diretrizes internacionais voltadas à garantia do acesso à justiça das mulheres e meninas.
“Ele parte do reconhecimento de que existem desigualdades estruturais que interferem diretamente nas nossas vidas (como as desigualdades de gênero e de raça) e não podem ser ignoradas pelas magistradas e magistrados, sob pena de se tornarem meras(os) reprodutoras(es) de discriminações e violências”, aponta.
A defensora destaca que esse reconhecimento envolve a adoção de uma postura crítica com relação à suposta neutralidade do Direito, pois determinados grupos sociais, como as mulheres, as pessoas negras, a população LGBTQIA+ e as pessoas com deficiência, “sempre foram alijados do processo de produção, interpretação e aplicação das leis”.
“Algumas leis, ainda que aparentemente neutras e abstratas, acabam por produzir discriminações indiretas contra determinados corpos marcados por opressões estruturais (como as mulheres) se aplicadas sem que se leve em consideração a forma como as desigualdades incidem sobre a pessoa jurisdicionada”, afirma.
Para a defensora, o protocolo representa um grande passo na construção de um sistema de justiça menos hostil às mulheres e às meninas, haja vista que determina a magistradas e magistrados que, desde sua primeira aproximação com o processo, questionem a existência de desigualdades estruturais relevantes.
O protocolo, ressalta ela, “impõe a observância do princípio da igualdade material durante toda a condução do processo, inclusive na produção da prova, evitando a revitimização e a reprodução de estereótipos de gênero; e, no momento da decisão, estabelece que se deve adotar a solução jurídica coerente com o arcabouço constitucional e convencional que seja capaz de contribuir para a superação das desigualdades estruturais”.
“É um protocolo que convoca magistradas e magistrados a assumir uma postura ativa na superação das desigualdades e a desconstruir seus próprios estereótipos em busca de uma prestação jurisdicional efetivamente imparcial e coerente com a Constituição Federal”, acrescenta.
Questionada sobre as mudanças desde a edição e obrigatoriedade do protocolo, Anne Teive Auras disse que elas “são lentas”. “E percebemos que ainda há muito desconhecimento a respeito de seu conteúdo, sem falar na resistência à incorporação das suas diretrizes pelos juízes e juízas”, complementa.
Contudo, ela listou avanços a celebrar, como o fato de que o protocolo tem sido objeto de uma série de debates, eventos e publicações, “tornando-se cada vez mais conhecido de defensoras(es), advogadas(os), promotoras(es) e magistradas(os), o que faz com que a sua aplicação seja mais exigida e cobrada por parte de diversos atores do sistema de justiça”.
No âmbito das Defensorias Públicas, notadamente por meio dos Núcleos de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), Anne Teive Auras conta que a adoção de uma perspectiva de gênero ao atuar defensorial tem sido discutida há muitos anos e ganhou reforço com a edição do protocolo do CNJ, com a realização de capacitações internas e a incorporação das teses previstas no documento às petições das defensoras e defensores públicos.
“O protocolo contribui, portanto, não apenas para qualificar as decisões judiciais e a prestação jurisdicional, mas para disseminar a importância da perspectiva de gênero na atuação de todo o sistema de justiça, desde o primeiro atendimento à mulher usuária até a efetiva resolução da sua demanda, seja ela qual for”, afirma.
A defensora diz que, apesar de ser voltado à atuação de magistradas e magistrados, o protocolo oferece um guia instrumental de atuação útil para todo o sistema de justiça.
“É fundamental que as instituições não apenas promovam a difusão e a sensibilização interna a respeito da importância do protocolo (por meio de eventos, debates, capacitações, teses e enunciados institucionais), mas também cobrem efetivamente a sua aplicação”, defende.
“Adotar a perspectiva de gênero não é uma opção, uma recomendação ou uma sugestão – é uma obrigação que o Estado brasileiro assumiu internacionalmente e um compromisso constitucional com a promoção dos direitos das mulheres e a superação de todas as formas de desigualdade”, acrescenta.
“As instituições também devem se esforçar para construir seus próprios protocolos de atuação com perspectiva de gênero, garantindo que as usuárias de seus serviços sejam acolhidas, desde o primeiro atendimento, de forma humanizada e não revitimizadora, e que as formas como as discriminações incidem sobre seus corpos e suas vidas (a violência de gênero, o racismo, a pobreza, a responsabilização desigual pelos cuidados com os dependentes, a dupla jornada, a fragilidade dos serviços públicos de educação e saúde etc) sejam devidamente reconhecidas, em uma atuação que efetivamente contribua para superá-las”, conclui.
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